domingo, 24 de janeiro de 2016

Fernão Lopes por António Lobo Antunes


Talvez que, enquanto escritor, a frase mais importante para mim, a que mais me ajudou neste ofício, tenha sido a que Herculano disse a propósito de Garrett: por meia dúzia de moedas o Garrett é capaz de todas as porcarias menos de uma frase mal escrita". Eu possuo um imenso respeito por Herculano, como homem e como prosador, como possuo um imenso respeito por Antero. A certa altura das nossas vidas a única fotografia que existia na sala dos meus pais era a sua, e parecia-me justo que, pela sua integridade como homem, e génio enquanto artista, assim fosse. Não gostava de Eça de Queiroz nem como pessoa nem como escritor

(considerava-o um autor cómico)

e compreendo-lhe as razões embora só parcialmente esteja de acordo com ele. Nos seus melhores momentos Eça de Queiroz era um excelente romancista, que teve o azar de viver na época dourada do romance, contemporâneo de dúzias de génios, de uma dimensão que ele, evidentemente, não tinha. Para falar só em russos, por exemplo, é muito pequeno ao lado de Gogol, Tolstoi, Turgueniev, Dostoievski(com todas as suas deficiências), Pushkin, Gontcharov, Tchekov (que não escreveu nenhum romance, aliás, mas o seu teatro, mas os seus contos) etc., não mencionando os franceses, os ingleses e por aí fora. Quem temos nós para dar em troca: Camilo e Eça, mas a que distância. Na poesia sim, seja em que época for, embora esteja convencido que a melhor poesia do século XX é polaca. Mas temos Fernão Lopes que não considero inferior a ninguém. O levantamento de Lisboa, que levou ao trono D. João I, é de um génio espantoso. Levanta uma cidade inteira, um país inteiro, um povo inteiro, só com a mão e papel. Quem mais foi capaz de fazer isto? E a nossa prosa admirável do século XVIII, D. Francisco Manuel de Melo, Matias Aires, vários outros. Os Opúsculos de Herculano, voltando ao século XIX, são obras-primas absolutas e ele, coisa rara em Portugal, sabia pensar. Em literatura saber pensar é dificílimo. Alguns dos nossos poetas medievais são estupendos, Camões, evidentemente, é único, mas Sá de Miranda, mas Bernardim? E Bocage? A Pavorosa Ilusão da Eternidade é uma coisa magnífica, que me maravilha tanto como o poema de Guilherme de Aquitânia, no século XII, que começa "Farei um poema de puro nada" e que vale por centenas de outros todos juntos. Falando ao acaso os sonetos de Miguel Ângelo são de uma perfeição absoluta, o que Leopardi escreveu também. Vagas estrelas da Ursa
Maior, meu Deus, que maravilha, sem mencionar o trio romano cuja obra me arrepia, Virgílio, Horácio, Ovídio, puros milagres. É terrível competir com esta gente mas é necessário competir com esta gente. Estava a pôr isto e a pensar numa frase de Faulkner: "descobri que escrever é uma coisa tremendamente bela: faz-nos erguer sobre as patas de trás e projectar uma enorme sombra". Ou aquela frase aparentemente tão simples com que Manuel da Fonseca começa um dos seus livros: "Antigamente o largo era o centro do mundo". O Zé Cardoso Pires repetia sem cessar: é preciso que a gente sofra para o leitor ter prazer, e isto é tão dolorosamente verdadeiro. É preciso que a gente sofra para o leitor ter prazer, irmãozinho, que me deixaste tão órfão da tua amizade. Esta crónica parece quase as conversas que a gente tinha, assim aparentemente descosidas, ao acaso. Que a gente sofra, que a gente sofra, que a gente sofra. E o arrebatamento da poesia de DylanThomas, a surpresa de alguns trechos de Wallace Stevens? Um só verso de Victor Hugo, "a sombra é sempre negra mesmo a que cai dos cisnes", um só verso de Apollinaire: "Piedade para nós que trabalhamos na fronteira do ilimitado e do futuro", o testamento de François Villon. Cendrars, paixão da minha adolescência, a música,sem um defeito, de Verlaine? É com estes homens que temos de nos medir, são eles que temos de ultrapassar. Cervantes: "É impossível lutar contra o céu, sobretudo quando está a chover". E Rosalía? E Lorca? "Por tu amor me duele el aire el corazon y el sombrero". E Gustavo Adolfo Becquernos seus melhores momentos? e o poder evocativo único de António Nobre? Não será o Só o grande livro de toda a nossa poesia? Um ou dois sonetos de Nunes Claro, a ''tocadora de harpa" de Pessoa, nos Passos da Cruz, o - "Não é Meia Noite quem quer" de René Char, o "Branco e Vermelho" de Pessanha. E a gente no meio disto, a gente a lutar com isto. Talvez não haja nada melhor que uma gloriosa derrota porque, por muito grandes que sejamos, acabaremos sempre derrotados. Quevedo disse-o: "serei pó, mas pó apaixonado". Becket tinha razão: errar, errar melhor. Meu Deus ajuda-me a errar melhor. Goethe sustentava que é o não chegar que faz a nossa grandeza. Morrer à vista da Terra Prometida sem conseguir tocar-lhe. Se Deus, como penso, existe de facto, gostaria de acabar assim. Quase lá, a centímetros do que quereria dizer, olhando a areia em que não chego a tocar. Isso me basta: ficar a centímetros da areia em que não chego a tocar, de boca aberta, sem olhos e, no entanto, vendo.

António Lobo Antunes, in Visão, 26 novembro 2015

Obrigada à Maria José Carvalho, que me enviou esta crónica. Bjs 

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