Talvez que, enquanto
escritor, a frase mais importante para mim, a que mais me ajudou neste ofício,
tenha sido a que Herculano disse a propósito de Garrett: por meia dúzia de
moedas o Garrett é capaz de todas as porcarias menos de uma frase mal escrita".
Eu possuo um imenso respeito por Herculano, como homem e como prosador, como
possuo um imenso respeito por Antero. A certa altura das nossas vidas a única
fotografia que existia na sala dos meus pais era a sua, e parecia-me justo que,
pela sua integridade como homem, e génio enquanto artista, assim fosse. Não
gostava de Eça de Queiroz nem como pessoa nem como escritor
(considerava-o um
autor cómico)
e compreendo-lhe as
razões embora só parcialmente esteja de acordo com ele. Nos seus melhores
momentos Eça de Queiroz era um excelente romancista, que teve o azar de viver
na época dourada do romance, contemporâneo de dúzias de génios, de uma dimensão
que ele, evidentemente, não tinha. Para falar só em russos, por exemplo, é muito
pequeno ao lado de Gogol, Tolstoi, Turgueniev, Dostoievski(com todas as suas
deficiências), Pushkin, Gontcharov, Tchekov (que não escreveu nenhum romance,
aliás, mas o seu teatro, mas os seus contos) etc., não mencionando os
franceses, os ingleses e por aí fora. Quem temos nós para dar em troca: Camilo
e Eça, mas a que distância. Na poesia sim, seja em que época for, embora esteja
convencido que a melhor poesia do século XX é polaca. Mas temos Fernão Lopes que não considero inferior a ninguém. O
levantamento de Lisboa, que levou ao trono D. João I, é de um génio espantoso. Levanta uma cidade inteira, um país
inteiro, um povo inteiro, só com a mão e papel. Quem mais foi capaz de fazer
isto? E a nossa prosa admirável do século XVIII, D. Francisco Manuel de Melo, Matias
Aires, vários outros. Os Opúsculos de Herculano, voltando ao século XIX, são
obras-primas absolutas e ele, coisa rara em Portugal, sabia pensar. Em
literatura saber pensar é dificílimo. Alguns dos nossos poetas medievais são
estupendos, Camões, evidentemente, é único, mas Sá de Miranda, mas Bernardim? E
Bocage? A Pavorosa Ilusão da Eternidade é uma coisa magnífica, que me maravilha
tanto como o poema de Guilherme de Aquitânia, no século XII, que começa
"Farei um poema de puro nada" e que vale por centenas de outros todos
juntos. Falando ao acaso os sonetos de Miguel Ângelo são de uma perfeição
absoluta, o que Leopardi escreveu também. Vagas estrelas da Ursa
Maior, meu Deus, que maravilha, sem mencionar o trio romano cuja obra me
arrepia, Virgílio, Horácio, Ovídio, puros milagres. É terrível competir com
esta gente mas é necessário competir com esta gente. Estava a pôr isto e a
pensar numa frase de Faulkner: "descobri que escrever é uma coisa
tremendamente bela: faz-nos erguer sobre as patas de trás e projectar uma
enorme sombra". Ou aquela frase aparentemente tão simples com que Manuel da
Fonseca começa um dos seus livros: "Antigamente o largo era o centro do
mundo". O Zé Cardoso Pires repetia sem cessar: é preciso que a gente sofra
para o leitor ter prazer, e isto é tão dolorosamente verdadeiro. É preciso que
a gente sofra para o leitor ter prazer, irmãozinho, que me deixaste tão órfão
da tua amizade. Esta crónica parece quase as conversas que a gente tinha, assim
aparentemente descosidas, ao acaso. Que a gente sofra, que a gente sofra, que a
gente sofra. E o arrebatamento da poesia de DylanThomas, a surpresa de alguns
trechos de Wallace Stevens? Um só verso de Victor Hugo, "a sombra é sempre
negra mesmo a que cai dos cisnes", um só verso de Apollinaire:
"Piedade para nós que trabalhamos na fronteira do ilimitado e do
futuro", o testamento de François Villon. Cendrars, paixão da minha
adolescência, a música,sem um defeito, de Verlaine? É com estes homens que
temos de nos medir, são eles que temos de ultrapassar. Cervantes: "É impossível
lutar contra o céu, sobretudo quando está a chover". E Rosalía? E Lorca?
"Por tu amor me duele el aire el corazon y el sombrero". E Gustavo
Adolfo Becquernos seus melhores momentos? e o poder evocativo único de António Nobre?
Não será o Só o grande livro de toda a nossa poesia? Um ou dois sonetos de
Nunes Claro, a ''tocadora de harpa" de Pessoa, nos Passos da Cruz, o - "Não
é Meia Noite quem quer" de René Char, o "Branco e Vermelho" de
Pessanha. E a gente no meio disto, a gente a lutar com isto. Talvez não haja
nada melhor que uma gloriosa derrota porque, por muito grandes que sejamos, acabaremos
sempre derrotados. Quevedo disse-o: "serei pó, mas pó apaixonado".
Becket tinha razão: errar, errar melhor. Meu Deus ajuda-me a errar melhor.
Goethe sustentava que é o não chegar que faz a nossa grandeza. Morrer à vista
da Terra Prometida sem conseguir tocar-lhe. Se Deus, como penso, existe de
facto, gostaria de acabar assim. Quase lá, a centímetros do que quereria dizer,
olhando a areia em que não chego a tocar. Isso me basta: ficar a centímetros da
areia em que não chego a tocar, de boca aberta, sem olhos e, no entanto, vendo.
António Lobo Antunes, in
Visão, 26 novembro 2015
Obrigada à Maria José Carvalho, que me enviou esta crónica. Bjs